3.2.25

Monster

Apoiou as mãos e os pés no chão, como se fizesse uma flexão. Sentiu uma força violenta saindo de dentro de si. Apertou o chão com muita força. Deu um uivo de dor. Sentiu a pele inteira arrebentando. Depois os tendões, músculos e os ossos. Do resto da carne emergiu um bicho, uma criatura indescritível. Olhos negros que tragavam tudo. Sem reflexo. Sem fundo.

Abriu os braços e estufou o peito aspirando todas as trevas que podia. Elas o inflavam de tal maneira que pulmão ultrapassava o tamanho de todas as partes do corpo.

Sentia um poder mórbido, que demandava movimento. Tinha uma ânsia de correr em quatro patas e estraçalhar coisas com suas mãos, como se as garras que brotavam delas demandassem sangue.

Vontade de arrancar portas, entortar metais. Vontade de rasgá-la em duas partes e ver o sangue escorrer na calçada, até entrar num bueiro. Ver os ratos provando daquele líquido vermelho.

Vontade de estraçalhar vidros, cercas, muros, de virar carros, de derrubar postes. Queria parar carros com seu corpo imenso. Provocar acidentes em massa, parar as ruas, ouvir as pessoas gritando de pavor.

Queria absorver mais trevas, duplicar de tamanho. Esmagar crânios.

Antes tinha caído no chão e imaginado uma morte linda. Permanecia deitado e alguém partia seu peito com uma grande marreta de metal e concreto. Subia a marreta até o alto para pegar impulso e a abaixava com toda força. O sangue explodia através da sua boca. Uma morte rápida e poética. Representava exatamente o que sentia, o coração estraçalhado no chão. Já havia imaginado mortes, mas nunca uma tão bonita.

25.11.21

Cara ou Coroa

O que você queria saber que eu não disse?

Melhor seria a ironia.
Mais um remendo no peito. As cicatrizes amontoadas.
As batidas que ficam diferentes no tambor costurado.
A força que se esvai até sobrar um fiozinho de nada.
A vontade de ver um meteoro atingindo planeta e esgotando todo o tempo que resta.
O tempo que vira um martírio.
O entalo na garganta.
Mais uma vez em outro planeta.
Sem entender a vida.
A que vira soluço.

As pessoas sempre vão.

26.2.20

Mais um, menos um

Espero o semáforo abrir. 
O dia cinza pra me fazer companhia.
Aperto o cabo do fone ou um terço. 
Sem querer faço uma prece pra que o dia acabe sem insônia.
Caminho em direção ao parque.
Sinto que meus pés andam sozinhos.
Barreiras metálicas ainda contornam tudo.
Percorro os mesmos lugares. 
Nós passamos, os lugares ficam.

Peço um café.
O mesmo gosto.
O lugar é o mesmo.
Eu não.

Sete cidades pra combinar com sete anos de engano.
"Já me acostumei com a tua voz,
Com teu rosto e teu olhar.
Me partiram em dois
E procuro agora o que é minha metade (...)"


24.2.20

Sobre não saber

As noites em claro.
Os pensamentos afogados.
Os nós na garganta.
As dores no peito.
Os hematomas.
A respiração ofegante.
Os soluços agudos.

As noites frias.
Os pensamentos guardados.
As dores na garganta.
O peito acelerado.
Os arranhões.
A espuma na boca.
O silêncio cortante.





21.7.19

Ghost Story

Tantas luzes acesas.
Tantos carros passando.
Essa fumaça me lembra alguma coisa, mas não consigo definir. Continuo tossindo. Estou me acostumando já.
Estou tentando sentir menos. O vinho ajuda. A mesma música há uma hora. Não conseguimos decifrar quem descobriu essa linguagem secreta que conecta todos os homens.
Lembrei de todos os escritores que passaram por mim. Quase todos já se foram. Foram colocados em um caixão de madeira e fizeram alguém chorar. Com certeza eles também já sentiram a estupidez da existência.
No fim tudo se resumiu a um caixão descendo pra baixo da terra.
Estamos todos virando história.
Algumas ainda serão lidas. Outras jamais serão abertas.
Todos nós podemos ser aquele fantasma do filme. Aquele fantasma poderia ser eu. Esperando a vida se mover lentamente, enquanto tudo desaba. Preso numa estória. Virando história.

Tantas gerações pra chegar aqui...



4.12.18

20.


Até dá vontade de culpar o outro, a vida, a economia, a sociedade.
Mas nem é. É culpa minha mesmo.
Eu me trouxe até aqui. 
Por sufocar a rebeldia que me incomodava tanto. 
Segurei tanto o choro e a raiva que só sobrou o silêncio.
A cada dia eu me despedia um pouco dela, dele... de mim.
Troquei o papel pelas teclas, a poesia pelos relatórios. 
E se há cada vez menos vida em tudo que eu vejo, a culpa é minha.
Troquei a poesia pela prosa, a literatura pela burocracia.
-Há que se sobreviver... sub viver.
Não há. 
Há que se viver, sentir o peito ardendo mesmo e ter os olhos vivos de sangue. 
Há que se atirar no palco e enfrentar os risos. 
Há que se morrer de amor...
Volta lá e me avisa. Avisa que vou me deixar desaparecer.
Grita por mim. Acorda todo mundo.


Não me deixa sumir.

6.8.15

Caverna

As portas estão permanentemente abertas.
Há claridade o tempo todo, mas o ar continua denso.
As sombras deixam a parede e se transformam em imagens.
Raios que atravessam pele, ossos, espírito.
Relógios que não funcionam.
Remédios sem efeito.

Nem sorrisos ou lágrimas, ou risadas ou gritos.
Só fantasmas.
As paredes que já ouviram cada suspiro meu,
Abrigam agora o meu coração.